ELABORAÇÃO DO PENSAMENTO CIENTÍFICO: PERCEPÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DE EPISTEMOLOGIAS EUROCÊNTRICAS[1]
XAVIER, Josilda B. Lima M[2].
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Conhecer o processo de desenvolvimento da elaboração do pensamento científico exige reflexões sobre as estratégias utilizadas ao longo dos séculos, em várias áreas do conhecimento, na perspectiva eurocêntrica, hegemônica, enquanto oportunidade de aprofundar conceitos e entendimentos dos temas que são trabalhados nas matrizes curriculares no Ensino Básico e no Ensino Superior.
Bauer (2012) argumenta que “Existem diferentes definições de ciência construídas historicamente no mundo ocidental, abarcando uma vasta gama de tendências teóricas que pautaram o tema entre as suas mais sinceras preocupações intelectuais”. O contexto apresentado pelo autor, exige que se faça o destaque pontual sobre o conceito político de “mundo ocidental” analisado na atualidade, enquanto área política-geográfica que abrange os países que formam a comunidade européia (CE), países da América do Norte (EUA e Canadá), e as colônias monarquistas inglesas: Austrália e Nova Zelândia. (SILVA, 2022)
Para tanto, vamos “navegar” na história da construção da ciência eurocentrada/estadunidense, analisando e refletindo sobre alguns processos de construção do pensamento científico a partir das abordagens de seus principais epistemólogos:
1. Edmund Husserl (1859-1938) – Fenomenologia

Matemático e filósofo alemão, desenvolveu a Teoria da Fenomenologia no início do século, na Alemanha, a partir de influências do pensamento de Platão, Descartes e Brentano, influenciando muitos pensadores ao longo dos séculos XIV e XX, tais como Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão; Alfred Schutz (1899-1959), filósofo e sociólogo austríaco; Jean Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês; Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo fenomenólogo francês; não só na Europa, e, também, com repercussão nos Estados Unidos. Atualmente, no início do século XXI, a fenomenologia continua influenciando estudiosos em todos os continentes. (OLIVEIRA E SILVA; LOPES; DINIZ, 2008).
A gênese da Fenomenologia deriva das palavras gregas “phainesthai” que significa “aquilo que se mostra”, e “logos” que significa “estudo”. Portanto, em sua etimologia, significa estudo dos fenômenos, daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado, o “estudo do que se mostra”. A fenomenologia pretende ser “ciência das essências” e não de dados de fato “método de investigação”, como diz Heidegger em “Ser e tempo”. Ou seja, “a expressão ‘fenomenologia’ significa, antes de tudo, um conceito de método” (HEIDEGGER, 2006, p. 66 apud LIMA (Org.), 2014), para a elaboração do conhecimento filosófico.
MERLEAU-PONTY (1999), esclarece que a premissa da fenomenologia é o “estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo”. Tem a pretensão de “uma filosofia que seja uma 'ciência exata', mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo ‘vividos’” onde se busca descrever a experiência humana tal como ela é, sem considerar a “gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer”.

O método fenomenológico consiste em mostrar o que é apresentado e esclarecer os diversos fenômenos (naturais, sociais, psicológicos etc.) como se apresentam. Para a fenomenologia o objeto de pesquisa é como o sujeito o percebe, e tudo tem que ser estudado tal como é para o sujeito e sem interferência de qualquer regra de observação cabendo a abstração da realidade e perda de parte do que é real, pois tendo como objeto de estudo o fenômeno em si, estuda-se, literalmente, o que aparece. Santos (2021), esclarece que “o modelo fenomenológico não pode ser enquadrado como método dedutivo nem empírico. Consiste em mostrar o que é dado e em esclarecer este dado.” Para a fenomenologia um objeto, uma sensação, uma recordação, enfim, tudo tem que ser estudado tal como é para o espectador.
2. Gaston Bachelard (1884-1962) – Filosofia da ciência

Químico, filósofo e poeta francês, desenvolveu suas ideias a partir de uma filosofia das Ciências Naturais, especialmente a Física, contribuindo para uma epistemologia que também utiliza métodos da psicanálise.
Bachelard é o primeiro filósofo a criticar de forma veemente a visão tradicional de ciência, a perspectiva empírica-indutivista. (MELO, 2005). Em sua epistemologia, o filósofo francês “tece duras críticas ao ensino de Ciências, principalmente ao seu aspecto determinista, linear e comunicador de verdades prontas”; para ele o modelo bancário, centrado na passividade do estudante, onde o professor transmite conhecimentos prontos, é altamente criticável, por não considerar a complexidade do processo. (DUTRA, 2015).
Yamazaki (2011, p. 56 apud NASCIMENTO, 2021) afirma que, para Bachelard,
[...] a Ciência é uma construção complexa, longe do senso comum, não podendo, esta última, compreender por justaposição toda uma série de leis abstratas construídas historicamente. Esta forma de situar a ciência como um sistema demasiadamente complexo quando comparado com as observações e experiências do senso comum, incluindo os experimentos do Laboratório Didático, vem de um profundo estudo das leis que regem as Ciências.
Considerando a complexidade da elaboração do conhecimento científico, tendo como parâmetros as subjetividades e experiências dos sujeitos, Gaston Bachelard (1996 apud NASCIMENTO, 2021) propõe
uma ruptura com a cultura experimental sedimentada na vida cotidiana dos estudantes, ou seja, mudar a forma como esses veem a ciência, uma vez que fazer ciência é muito mais que realizar simples experimento. Entretanto, romper com esses obstáculos sedimentados pela vida cotidiana desses alunos e um grande desafio a ser enfrentado.
Entretanto a ruptura proposta por Bachelard, para que um novo conhecimento seja elaborado, está ancorado no fato de que “no ato de conhecer, em sua visão, o sujeito diante de um novo conhecimento tende a buscar familiaridade com aquilo que conhece” (SILVA, 2015), procurando relacioná-lo com o conhecimento que está enraizado e que lhe é familiar.
Para Nascimento (2021), analisando a epistemologia da ciência de Bachelard, “O obstáculo está na não aceitação do novo conhecimento e que são necessárias rupturas no que sabe oportunizando assim um novo olhar, dando a este um caráter novo, ou melhor, um caráter científico”. Para o autor, Bachelard denomina “obstáculos epistemológicos por esses surgirem no próprio ato de conhecer da relação do sujeito e o objeto do conhecimento”, dificultando o surgimento do novo conhecimento.

A elaboração do conhecimento científico, a partir da nova Filosofia da Ciência de Gaston Bachelard, evidencia que a “epistemologia tradicional valoriza como ciência um conhecimento absoluto, verdadeiro e indubitável, ao passo que a partir da Nova Filosofia da Ciência compreende-se o caráter científico por uma natureza conjectural, naturalmente falível, e recheada de incertezas” (MOREIRA, 2016), possibilitando a formação de debates no Ensino de Ciências sobre as interfaces epistemológicas e as práticas docentes, o que pode representar uma relevante ferramenta potencializadora à formação de professores críticos, atentos à complexidade que envolve a elaboração do conhecimento científico.
Enquanto um dos principais pensadores da era Moderna, Gaston Bachelard, apresenta a Filosofia da Ciência como uma epistemologia aberta, “pois seus princípios não são intocáveis e suas verdades não são totais e acabadas”; o filósofo considera que o ser humano a partir de sua totalidade, compreendendo que “razão e imaginação são caminhos fundamentais e indispensáveis para a nossa constituição” (MACHADO, 2016) e, portanto, para a elaboração do conhecimento.
3. Karl Raimund Popper (1902-1994) – Falseabilidade

Filósofo e professor austro-britânico, migrante na Nova Zelândia, publicou a obra “Lógica da Investigação Científica” (1935), considerada uma das obras mais importantes de Filosofia da Ciência. Fez parte do Círculo de Viena, uma associação fundada na década de 1920 por um grupo de cientistas, lógicos e filósofos que concentrava seus esforços em torno de um projeto intelectual que pretendia o desenvolvimento de uma filosofia da ciência baseada em uma linguagem e procedimentos da lógica e com alto rigor científico. (SANTOS, 2022)
Karl Popper (1935), em sua obra mais importante, “A Lógica da Investigação Científica” inova a discussão epistemológica sobre a pesquisa científica ao “demonstrar que o erro, em vez de ser um mal que pode ser evitado através do recurso a algum procedimento metodológico específico, constitui componente inevitável de qualquer teoria científica, sendo na realidade o motor pelo qual a ciência se move” (SCHMIDT; SANTOS, 2007).
O criador do “princípio da falseabilidade”, enquanto meio de ratificar o conhecimento científico, Popper (1972), afirma que
Um dos ingredientes mais importantes da civilização ocidental é o que poderia chamar de 'tradição racionalista', que herdamos dos gregos: a tradição do livre debate – não a discussão por si mesma, mas na busca da verdade. (...) Dentro dessa tradição racionalista, a ciência é estimada, reconhecidamente, pelas suas realizações práticas, mais ainda, porém, pelo conteúdo informativo e a capacidade de livrar nossas mentes de velhas crenças e preconceitos, velhas certezas, oferecendo-nos em seu lugar novas conjecturas e hipóteses ousadas. A ciência é valorizada pela influência liberalizadora que exerce – uma das forças mais poderosas que contribuiu para a liberdade humana. (p. 129)
A ciência, na perspectiva popperiana, é produzida através de uma permanente construção de hipóteses e de sua comparação com a realidade. Schmidt; Santos (2007), ressaltam que Karl Popper “concebe a ciência como uma sucessão de pensamentos, frutos da imaginação criadora do homem, que historicamente se aproxima cada vez mais da verdade”; os autores argumentam que para Popper, em um certo grau, o homem, no processo de elaboração do conhecimento “transforma essa mesma verdade, ao transformar o mundo que nos cerca”.
Contrariando os “postulados positivistas de que a linha divisória entre a ciência e a metafísica corresponde ao que tem sentido do que não tem, ou do que pode ser confirmado, ou verificado ou não” – princípio da verificabilidade proposto pelo Círculo de Viena -, Popper estabeleceu como “critério de demarcação entre ciência e metafísica: a falseabilidade, ou seja, toda proposição que possa ser refutada por experiência empiricamente observável é científica; caso contrário, a proposição em questão é metafísica. (SANTOS, 2022; SCHMIDT; SANTOS, 2007).

Com o princípio da falseabilidade, Popper “estabeleceu o momento da crítica de uma teoria como o ponto em que é possível considerá-la científica. As teorias que não oferecem possibilidade de serem refutadas por meio da experiência devem ser consideradas como mitos, não como ciência”; portanto, “Dizer que uma teoria científica deve ser falseável empiricamente significa dizer que uma teoria científica deve oferecer possibilidade de refutação – e, se refutadas, não devem ser consideradas” (SANTOS, 2022).
Ao mesmo tempo, na concepção epistemológica de Karl Popper, onde o princípio da falseabilidade conduz à busca constante da verdade científica, ao transformar o mundo que o cerca, o homem parece afastar a “verdade” para “uma fronteira cada dia mais distante, sempre capaz de uma explicação cada vez mais abrangente dos fenômenos observáveis, movida sempre pela crítica de nossos erros e pela refutação sucessiva das teorias, uma após a outra, refutações estas que colocarão novos problemas a serem enfrentados, novas perguntas a serem respondidas (SCHMIIDT; SANTOS, 2007), demonstrando que um progresso cientifico não consiste em “acumulação de observações, mas em superação de teorias menos satisfatórias e sua substituição por teorias melhores, ou seja, por teorias de maior conteúdo”.
Desse modo, o progresso do conhecimento científico, na concepção popperiana, não pode ser pensado a partir de uma “lei histórica”, e sim algo que acontece em virtude da própria razão humana a partir da possibilidade de discussão crítica. Assim, é possível perceber que “seu projeto consiste em uma tentativa de preservar o debate livre e crítico e a avaliação constante das ideias para que essas sejam aperfeiçoadas" (SCHMIIDT; SANTOS, 2007), podendo ecoar no contexto societário.

4. Wilhelm Christian Ludwig Dilthey (1833-1911) – Historicismo

Filósofo hermenêutico, psicólogo, historiador e pedagogo alemão, desenvolveu, entre o fim do século XIX e início do século XX, a concepção filosófica denominada de Historicismo, também conhecida por historismo.
A necessidade de deixar registrados fatos/fenômenos ocorridos, é uma necessidade humana, explicitada desde tempos imemoriais, quando nossos ancestrais registravam acontecimentos, em suas primeiras manifestações culturais, através de inscrições feitas sobre suportes rochosos abrigados (cavernas e grutas) ou ao ar livre (paredões e lajedos) -, onde retrataram suas crenças, seus rituais, suas descobertas e seu cotidiano usando extratos de plantas, carvão, sangue e fragmentos de rochas. (VIANA et al, 2016). Desse modo, as chamadas pinturas rupestres, podem ser consideradas os primeiros registros históricos da humanidade.

No que se refere a historiografia como a conhecemos, Barros (2012), ressalta que “Não há grandes discordâncias entre os historiadores a respeito do momento em que, na história da historiografia ocidental, começa a surgir uma nova historiografia já auto-identificada como científica”, que se inicia no final do século XVIII e início do século XIX, e que se contextualiza na Revolução Industrial (1760-1840), na Grã-Bretanha, e no mundo político-social que emerge dos desdobramentos da Revolução Francesa (1789-1799) e da Restauração (monarquia constitucional, em 1830).
Para o reconhecimento das chamadas Ciências Humanas enquanto áreas de formulação do conhecimento científico, Wilhelm Dilthey (1833-1911) delineou a especificidade metodológica das ciências históricas, já iniciada por historiadores que o antecederam, elaborando a “a mais sofisticada defesa da necessidade de delinear uma postura metodológica específica para a História e para as demais ciências do espírito, por oposição ao padrão das ciências da natureza” (BARROS, 2012).
Sua formação hermenêutica, além de filósofo e historiador, certamente influenciou Wilhelm Dilthey, em sua forma de pensar. Ele “defendia que os fenômenos humanos são históricos, eles eram dotados de valor, significado, sentido e finalidade” e, essas razões deveriam ser observadas de que “as pesquisas da área das ciências humanas não deveriam usar os mesmos métodos das ciências da natureza” (SANTANA, 2020).
Considerando as características específicas das ciências humanas, Dilthey defendia a necessidade de “criar um novo método que fosse capaz de decifrar qual o sentido dos fatos humanos” (SANTANA, 2020). A metodologia elaborada por ele, a da causalidade histórica, definiria que as pesquisas deveriam considerar que i) Os fenômenos da humanidade são históricos e temporais; ii) As análises devem ser feitas observando o momento histórico e as fases de desenvolvimento da sociedade; iii) No historicismo também devem ser observados os fatores políticos, religiosos, sociais, econômicos, psíquicos, técnicos e artísticos. (SANTANA, 2020; BARROS, 2012)
Barros (2012) chama a atenção que, para Wilhelm Dilthey,
a História – ou qualquer outra as hoje chamadas ciências humanas – estaria vinculada à necessidade de “compreender” (Verstehen) os fenômenos humanos, de entendê-los não apenas em sua forma externa, mas também por dentro, perscrutando seus sentidos, suas implicações simbólicas, ideológicas, vivenciais, ou, em uma palavra, seus significados. Esta oposição entre a “compreensão” típica das ciências humanas, e a “explicação” típica das ciências naturais, tornar-se-ia clássica, uma referência não apenas para o historicismo como, de modo geral, para boa parte da historiografia do século XX em diante. A partir daí, iremos encontrar em autores diversos, e também fora dos quadros do historicismo, a idéia de uma separação mais clara entre as “ciências da natureza” e as “ciências da sociedade”.
A forma de pensar do mais proeminente criador da concepção filosófica sobre a elaboração do conhecimento, na perspectiva histórica, Wilhelm Dilthey, se revela em seu posicionamento sobre sua forma de viver, reproduzido[3] na figura abaixo:

5. Stephen Toulmin (1922-2009) – Argumentação

Filósofo britânico conhecido principalmente por suas contribuições aos estudos da argumentação. “O termo argumentação será usado para referir toda a atividade de apresentar teses, desafiá-las, reforçá-las através de razões, criticar essas razões, refutar essas críticas, e por aí em diante” (TOULMIN; RIEKE; JANIK, 1984 apud GRACIO, s/d)
Nascimento e Vieira (2008), afirmam que “A pesquisa em Educação Científica, nos últimos anos, tem focalizado a dimensão discursiva da sala de aula adotando a teoria sociocultural, segundo a qual uma das chaves para o entendimento da ação humana é o conceito de mediação”. Portanto, cabe ao professor, em sala de aula, realizar a mediação entre o conhecimento científico e o conhecimento que os alunos trazem consigo, sobre a temática a ser abordada.
Considerando a etimologia da palavra mediação, que é um conceito de origem nômade, entre o grego mesou (ideia de totalidade) e o latim mediatio, é possível inferir que mediar é a ação que se estabelece em um sistema de relações entre as partes e o todo; atividade que é um “processo de produção de meios de subsistência a partir de objetos socialmente elaborados, onde os artefatos são os agentes que promovem a mediação entre o ser humano e a natureza” (LENOIR, 1996).
A questão da argumentação tem sido abordada em diversos campos e é um tema emergente nas pesquisas de linguagem e cognição em sala de aula. Do ponto de vista clássico, a argumentação é considerada a “arte de pensar corretamente” e muitas vezes é tomada como sinônimo da lógica formal e, desde as formulações retóricas de Aristóteles até o fim do século XIX, foi incluída em um domínio mais amplo das argumentações retóricas, dialéticas ou lógicas (PLANTIN, 2005 apud NASCIMENTO; VIEIRA, 2008).
Argumentar é, portanto, defender racionalmente uma ideia ou opinião a partir dos diversos conteúdos/temas que darão sua sustentação, de modo que seja possível levar o interlocutor a aceitar como válida a ideia ou opini