A “FACE” DA FOME: Sintomas biológicos, causas político-socioeconômicas.
XAVIER, Josilda BLM[1]
Universidade do Estado da Bahia
“Estou morrendo de FOME!”
Quantas vezes repetimos essa frase quando passamos da hora de realizar alguma refeição? O que determina, biologicamente, a necessidade de ingestão de alimentos? Como o corpo humano reage com a falta de nutrientes? O que explica bilhões de pessoas com sintomas da fome, quando há produção de milhões de toneladas anuais de alimentos no mundo?

São tantas as perguntas, que é preciso ter cuidado para não nos “perdermos”!
Entretanto, não é mais possível dar continuidade às nossas vidas, realizando nossas atividades, como se tudo estivesse em seu devido lugar. É preciso questionar e buscar respostas, de modo a termos o conhecimento necessário para enfrentarmos a pandemia, mais perversa, que vem assolando bilhões de pessoas no mundo e no Brasil: a PANDEMIA DA FOME.
Como toda pandemia, a FOME, também tem causas, sintomas, diagnósticos e possibilidade de cura. Sendo assim, por que esta pandemia insiste em dizimar milhões de pessoas por ano, há séculos, sem que a "cura" seja encontrada?
A palavra FOME vem do latim faminem, termo dado à “sensação fisiológica pelo qual o corpo percebe que necessita de alimento” (WIKIPÉDIA, 2012), que irá suprir os nutrientes para dar condição ao organismo de manter todas as atividades essenciais à vida. De forma mais ampla, o termo FOME é usado nos “casos de desnutrição ou privação de comida entre as populações, normalmente devido a pobreza, conflitos políticos ou instabilidade, ou condições agrícolas adversas. Em casos crônicos, pode levar a um mal desenvolvimento e funcionamento do organismo”.
Nesse primeiro momento, é importante conhecer a FOME enquanto sensação fisiológica que nos faz procurar e ingerir alimentos para satisfazer as necessidades diárias de nutrientes. Assim, Paulino (s/d) afirma que “o ato de ingerir alimentos é causado por uma série de estímulos (ou sinais); e que “(...) o organismo é capaz de detectar diminuições mínimas na concentração de nutrientes e, em consequência, gerar sinais que vão desencadear a ingestão de alimentos.” Por outro lado, a autora ressalta que “todos nós temos experiência que fatores emocionais, facilitação social e condicionamento (uma forma de aprendizagem)” são responsáveis pela ingestão de comida sem que a pessoa esteja com FOME.
O processo inverso da FOME, é chamado saciedade e, também, é causado por vários estímulos fisiológicos. Os alimentos ingeridos servem para nutrir e para armazenar nutrientes no organismo, permitindo que as células tenham acesso à fonte energética necessária para a realização dos processos metabólicos dos sistemas, tais como: respiração, digestão, circulação, reprodução, excreção, coordenação neurológica etc. (Veja imagem abaixo.)

Quando a alimentação é feita de forma errada, o organismo consome toda a quantidade de nutrientes ingeridos e não estoca nada, danificando os tecidos musculares que são indispensáveis na recepção de estímulos nervosos, bem como a contração muscular. A falta de nutrientes no organismo pode provocar alguns problemas como desnutrição, atraso no desenvolvimento mental, hipovitaminose, anemia, anorexia, depressão, ansiedade, retenção de líquidos, câimbra, dor de cabeça, desconforto intestinal, memória ruim, cabelos e unhas frágeis, fraqueza, mal-estar, indisposição, colesterol e outros processos orgânicos (CABRAL, s/d).
A FOME, enquanto falta de acesso aos alimentos necessários à subsistência humana, provoca consequências graves à saúde humana, tais como desnutrição (devido à falta de nutrientes, proteínas e calorias), raquitismo (devido à carência de Vitamina D), anemia (provocada pela ausência de Ferro) e vários distúrbios e doenças (causadas pela falta de Vitaminas A e do Complexo B).

Todas as carências nutricionais sentidas pelo organismo afetam o corpo humano, integralmente, contribuindo para diminuir o poder de ação do sistema imunológico, responsável pelo combate a várias doenças no organismo, deixando o indivíduo exposto a contrair diversas patologias viróticas, bacterianas, ou causadas por vermes ou protozoários.
As modificações orgânicas ou funcionais no corpo humano, causadas pela FOME, podem ser verificadas a partir da não coordenação do corpo pelo cérebro, por falta de energia; o organismo retira energia dos músculos, deixando a pessoa esquelética e sem força; e, sem fonte de energia, a pessoa tem dificuldade de raciocínio, tem tonturas, pode ficar inconsciente, e náuseas são muito comuns. A pior de todas as consequências é quando todos estes estágios chegam a um limite, levando o indivíduo à morte. (MARTINEZ, s/d).

Apesar de todo o avanço tecnológico e científico, “mais pessoas estão passando fome, segundo um estudo anual da ONU. Dezenas de milhões se juntaram às fileiras de subnutridos crônicos nos últimos cinco anos, e países ao redor do mundo continuam lutando com múltiplas formas de desnutrição; (...) depois de diminuir, constantemente, por décadas, a fome crônica começou lentamente a aumentar em 2014 e continua a fazê-lo” (UNICEF, 2020).
Segundo o relatório “O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo”, publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em julho de 2020, a “Ásia continua sendo o lar do maior número de desnutridos (381 milhões); a África vem em segundo lugar (250 milhões); seguida pela América Latina e o Caribe (48 milhões) (UNECEF, 2020).

Entretanto, os números apresentados acima parecem subestimados, quando comparados com os dados publicados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 22 de abril de 2021, que explicita:
“No auge do pior momento da pandemia da Covid-19 em seu território, o Brasil hoje vive além das crises sanitária, econômica e política, uma crise de FOME. Segundo pesquisa divulgada no início desse mês de abril pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o país vive uma situação alarmante de insegurança alimentar e fome. Os resultados evidenciam que neste tempo de pandemia, 116,8 milhões de brasileiros não possuem acesso pleno e permanente a alimentos e, desse número, 43,4 milhões (20,5% da população) não contam com alimentos em quantidade suficiente em casa, enquanto 19,1 milhões (9% da população) passam fome (estado de insegurança alimentar grave). Além disso, a pesquisa da Rede também destaca que a FOME tem gênero, cor e grau de escolaridade. Os habitantes de domicílios chefiados por mulheres passam mais fome do que os de domicílios chefiados por homens. A FOME também esteve presente em 10,7% das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, enquanto esse percentual é de 7,5% em residências de pessoas de cor/raça branca. Por fim, a FOME se agrava em lares onde a pessoa de referência possui baixa escolaridade” (FONTOURA, 2021). (Grifo nosso)
Diante do exposto, é preciso exigir respostas para o fato de que, “paradoxalmente, o Brasil é hoje o segundo maior exportador de alimentos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Segundo dados da Embrapa e da Federação de Agricultura do Estado (Farsul), o país produz comida suficiente para estimados 1,6 bilhão de pessoas. Já que somos 200 milhões, falamos então de um excedente de 1,4 bilhão” (FONTOURA, 2021).

Todas as facilidades que o agronegócio vem encontrando nesses últimos 5 (cinco) anos, tais como facilidade de crédito e dedução de juros; ampliação de áreas cultiváveis após desmatamentos e incêndios florestais, inclusive com retomadas e “legalização” de terras indígenas, de comunidades quilombolas ou de áreas demarcadas etc., reforça o que Forlini (2020), chama a atenção:
“O agronegócio é um termo que engloba muitos setores e culturas diferentes, desde a pecuária de corte até a plantação de laranja, por exemplo. Ou seja, não é homogêneo. Podemos delimitar aqueles setores que fazem parte da “porteira para dentro” e aqueles da “porteira para fora”. O primeiro refere-se às atividades que estão ligadas à produção dentro da fazenda, como o plantio e a compra de sementes e agrotóxicos. Quando o produto sai da fazenda, ele fica a cargo de processamentos e/ou comercialização, estando na “porteira para fora”. Em linhas gerais temos, de um lado, produtores rurais e, de outro, as tradings, empresas encarregadas principalmente da compra e venda dos produtos e que são em sua maioria estrangeiras”.
Fontoura (2021) destaca que o agronegócio “comemora os resultados surpreendentes de sua produção com ampliação da produção de grãos em 500% nas últimas quatro décadas e atingindo a marca de maior produtor e exportador de soja do mundo (o país produziu 125 milhões de toneladas do grão na última safra)” e, no lado oposto de toda euforia do agronegócio, “os números da fome e insegurança alimentar crescem vertiginosamente durante a pandemia”.
O aumento da pobreza e condição de miserabilidade da população de países considerados periféricos e/ou em desenvolvimento, (re)colonizados[2] por diversas vezes, ao longo dos últimos séculos, como o Brasil, enquanto um grupo de “senhores feudais”, produtores de milhões de toneladas de alimentos com destino aos países ricos, sem a menor sensibilidade e empatia para com as milhares de famílias que se encontram em estado de insegurança alimentar (119 milhões de pessoas) ou FOME (19 milhões de pessoas), é sinal de que algo está completamente errado com a sociedade na qual estamos inseridos(as).
Nesse contexto nefasto, Fontoura (2021), destaca para o fato de que a agroecologia possa ser uma alternativa possível para a redução da fome e da insegurança alimentar no país, além de destacar que “É fundamental alertamos governantes, formuladores de políticas públicas e, também, à população em geral que o acesso a alimentos produzidos localmente é estratégico para o combate à FOME. Sabemos que a transição para um modelo agrícola mais inclusivo não se dará da noite para o dia, mas é preciso irmos além da agenda produtivista brasileira se quisermos tirar o país deste triste cenário”. (Grifo nosso)
A agroecologia tem como base a sistematização e consolidação de saberes e práticas (empíricos tradicionais ou científicos), visando à agricultura ambientalmente sustentável, economicamente eficiente e socialmente justa. (LEGNAIOLI, s/d).

As perguntas que nos inquietaram no início desse texto, ainda permanecem, nos instigando a buscar respostas para a PANDEMIA DA FOME, que é tão trágica quanto todas as pandemias já vivenciadas, entre elas a Peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis; Varíola, causada pelo vírus Orthopoxvírus variolae; Cólera, causada pela bactéria Vibrio cholerae; Gripe Espanhola, causada por um subtipo de vírus influenza; Gripe suína pelo vírus H1N1; e COVID-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 (RODRIGUES, 2020).
Como vimos, as pandemias que foram registradas e consideradas como as piores, são causadas por microrganismos, vírus ou bactérias.
Por que a PANDEMIA DA FOME, a mais perversa de todas, que tem causado a morte de milhões de pessoas ao longo dos séculos, tendo como agente “etiológico” o egoísmo, a indiferença e a sede de poder do Homo sapiens, é tão pouco questionada e, verdadeiramente combatida?

[1] Docente do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UNEB/DEDC/Campus VIII - Paulo Afonso. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0838920937933125
2] O termo (re)colonizado nesse texto, está considerando as várias colonizações que o capitalismo tem imposto aos países considerados periféricos: colonização territorial, colonização biocultural, colonização climática e, mais recentemente, a colonização molecular. Vide texto “Colonialismo Molecular. Um novo conceito, para uma antiga forma de domínio”, publicado em 03/05/2021 no site LabCriat-Umbuzeiro. https://www.labcriatumbuzeiro.com/
REFERÊNCIA
CABRAL, Gabriela. Mecanismo da fome. Mundo da Educação. s/d. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/saude-bem-estar/mecanismo-fome.htm
FORLINE, Luana. O agronegócio e o governo Bolsonaro. Brasil Debate / Artigos. Publicado em 01/10/2021. Disponível em: https://brasildebate.com.br/o-agronegocio-e-o-governo-bolsonaro/
FONTOURA, Yuna. Insegurança alimentar e fome no Brasil em tempos da Covid-19: uma reflexão. Fundação Getúlio Vargas – FGV. Publicado em 22 de abril de 2021. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/inseguranca-alimentar-e-fome-brasil-tempos-covid-19-reflexao
LEGNAIOLI, Stella. O que é agroecologia? E-Cicle – Sua pegada mais leve. s/d. Disponível em: https://www.ecycle.com.br/6493-agroecologia.html
MARTINEZ, Marina. Fome. Info Escola – Navegando e Aprendendo. s/d. Disponível em: https://www.infoescola.com/sociologia/fome/
PAULINO, Maria de Lourdes Mendes Vicentini. Como funciona o corpo humano? Publicado em site Museu Escola IB / Universidade Estadual Paulista – UNESP. s/d. Disponível em: https://www2.ibb.unesp.br/Museu_Escola/2_qualidade_vida_humana/Museu2_qualidade_corpo_digestorio1.htm
RODRIGUES, Letícia. Conheça as 5 maiores pandemias da história. Galileu / Saúde. Publicado em 28 de outubro de 2020. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2020/03/conheca-5-maiores-pandemias-da-historia.html
UNICEF. À medida que mais pessoas não têm o suficiente para comer e a desnutrição persiste, acabar com a fome até 2030 é uma incerteza, alerta relatório da ONU. Unicef – Brasil. Publicado em 13 de julho de 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/acabar-com-fome-ate-2030-e-incerteza-alerta-relatorio-onu
WIKIPEDIA. Fome. Wikipédia – Enciclopédia livre. Publicado em outubro de 2012. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fome